Não tem como ser um urbanista ou se interessar pelas questões das cidades e ainda não ter ouvido — muito — sobre o movimento “Cidades Inteligentes” (“Smart Cities”). A ideia é que não há nada nas cidades que o uso de dados (especialmente “big data”) ou de tecnologia não resolva. O resultado tem sido uma série de afirmações sobre como é possível solucionar problemas tão desafiadores como habitação, tráfego e desigualdade simplesmente criando modelos mais elaborados com base em big data ou implantando novas formas de tecnologia.
No entanto, ficamos céticos: é difícil ver como vamos tomar melhores decisões com dados ainda maiores e complexos quando os formuladores de políticas e tomadores de decisão parecem ignorar rotineiramente os pequenos e óbvios dados que já estão disponíveis. Como exemplo, começamos com um problema bastante simples. Muitos americanos gostariam de poder caminhar para seus destinos mais usuais, para isso eles estão dispostos a pagar um prêmio substancialpara morarem em habitações e bairros com níveis mais altos de caminhabilidade.
Enquanto isso, parece que estamos construindo de forma consistente mais bairros e cidades que dependem fortemente do carro. Certamente, se cidades inteligentes e tecnologia são a solução, elas devem ser capazes de lidar com esse problema básico, mas não são. Frequentemente escolhemos Houston, uma cidade notoriamente hostil para quem quer caminhar (embora todas as cidades americanas precisem melhorar nesse aspecto). A abordagem típica de cidades inteligentes/tecnocráticas que reúne dados abundantes sobre os padrões de viagens atuais — que refletem eles mesmos um mundo dominado por carros — que quase não contêm informações sobre transporte a pé ou de bicicleta e, ainda mais importante, não perguntam se as pessoas prefeririam lugares que tornassem mais fácil, conveniente e seguro para caminhar, comparado com lugares otimizados para o movimento de veículos.
Da forma como as “cidades inteligentes” e o pessoal da tecnologia abordam, “consertar” cidades e transportes é tudo sobre veículos, como ilustram suas simulações.
No mundo das “cidades inteligentes”, esse tipo de pensamento leva a alegações de que podemos eliminar todos os semáforos nos cruzamentos, passando o controle do veículo para computadores centralizados (essencialmente esquecendo das bicicletas e dos pedestres), ou que táxis autônomos poderiam eliminar o congestionamento, mas que ignoram conceitos fundamentais como da demanda induzida. Pesquisadores do MIT e da Universidade do Texas tiveram essas ideias e simplesmente presumiram que pedestres e ciclistas não existem, como explicou Eric Jaffe, para esses engenheiros automotivos:
É natural modelar cruzamentos como se os carros fossem o único modo que importa — especialmente quando os motoristas de computador tornam todos os movimentos previsíveis. O cruzamento sem motorista que apresentamos alguns anos atrás, baseado no trabalho dos cientistas da computação Peter Stone e Kurt Dresner, da Universidade do Texas em Austin, fez as mesmas suposições: muitos carros, nenhuma pessoa ou bicicletas.
Mesmo pessoas realmente inteligentes, armadas com muitos dados e “design thinking”, tendem a fazer perguntas que são fundamentalmente muito estreitas e que enfatizam o movimento pelo movimento, ao invés de atreladas a qualquer sensação maior de bem-estar ou qualidade de vida. Os planejadores de transporte e os autoproclamados tecnólogos de “cidades inteligentes” se concentram na otimização das cidades para o movimento dos veículos e dão pouco ou nenhum valor à otimização da qualidade do local para as pessoas, estejam elas caminhando, pedalando ou apenas escolhendo estar em um determinado local.
A visão “Big Data/Smart City” imagina que fazer as cidades funcionarem é apenas ir de “A” para “B”, quando na realidade o desafio urbano é criar lugares onde as pessoas queiram “estar”. Isso é um grande problema. O verdadeiro desafio para as cidades é ser mais ambicioso e aspiracional na construção dos lugares habitáveis e inclusivos que queremos. Isso é menos sobre como ajustar o desempenho de sistemas, como transporte, e mais sobre como construir um forte envolvimento da comunidade em torno da visão que temos para o futuro.
Considere a habitação, que é um desafio econômico, de acessibilidade e de equidade. Mais uma vez, existem soluções tecnológicas abundantes, como casas de impressão 3D, que são provocativas, mas não lidam com o problema institucional fundamental de que simplesmente tornamos ilegal o construção de moradias a preços acessíveis em vários lugares dos EUA. O esforço liderado por YIMBYs (“Yes, In My Back Yard”, ou “Sim, no meu quinal”) para construir uma coalizão em torno da ideia de permitir “moradias intermediárias”, ausentes da produção habitacional, é realmente a chave para todos esses objetivos (e os ambientais, também). E, como mostra a experiência recente de Portland em seu projeto para re-legalizar a “moradia intermediária” e aumentar a acessibilidade à moradia , isso não é apenas, ou principalmente, sobre modelagem tecnicista, é sobre engajamento político.
Tecnologia, modelagem e dados podem desempenhar um papel de suporte, mas o desafio é organizacional, político e de comunicação. Além disso, as promessas de uma solução técnica fácil criam uma espécie de lei de Gresham, em que a perspectiva de tecnologias pouco práticas, mas tecnologicamente empolgantes, impedem uma reforma institucional fundamental. Veja, por exemplo, o hyperloopmágico de Elon Musk, atualmente servindo como uma desculpa para não consertar o transporte de massa em muitas cidades, como Alissa Walker observa incisivamente:
E a cada vez que os líderes da cidade promovem uma de suas ideias fantásticas [de Elon Musk] — túneis minúsculos! veículos autônomos! o pelotão! — causam sérios danos às soluções da vida real propostas por especialistas que realmente tornam a vida de seus residentes melhor.
Estudo de caso: Portland, Oregon
Em teoria, os modelos de big data e de smart cities deveriam nos ajudar a tomar melhores decisões; na prática, eles são escravos de políticas quebradas e tendenciosas. Há quase uma década e dois prefeitos atrás, a equipe de Smart City da IBM veio a Portland para mostrar alguns de seus elaborados modelos de sistemas urbanos. Existem poucas evidências preciosas de que a modelagem de cidades inteligentes da IBM tenha tido algum poder de permanência na cidade. Considere, por exemplo, as mudanças climáticas (que é algo que o modelo da IBM deveria abordar). Acontece que Portland não usou esse modelo para o Plano de Ação Climática de 2015; e, desde então, a cidade praticamente se afastou de uma análise rigorosa de como a redução de modos automotivos é a chave para alcançar nossas metas climáticas declaradas (e agora mais ambiciosas).
A grande questão é como os modelos e seus resultados são usados no cenário político/institucional em que vivemos. Modelos, especialmente os grandes e complexos, são geralmente usados como armas por instituições para evitar ou desviar o escrutínio de suas grandes decisões. Construtores de rodovias, como o Departamento de Transporte de Oregon, frequentemente manipulam os dados nos seus modelos de transporte para justificar projetos gigantes, como o Columbia Rriver Crossing e o Rose Quarter.
O público carece de energia e de recursos para contestar este trabalho técnico, e ele se torna uma grande barreira para mudanças e uma justa consideração de alternativas. Frequentemente, as agências rodoviárias estaduais e os modelos de planejamento regional que criam esses modelos os constroem de maneiras que sistematicamente excluem fatores importantes.
A agência metropolitana de Portland, a Metro, não mede esforços para negar que existe algo como a elasticidade de preço da demanda (talvez o conceito mais fundamental em economia), argumentando que o número de motoristas aumentará independentemente do preço da gasolina. Isso leva a Metro, por sua vez, a ignorar as alavancas políticas mais poderosas que poderia implementar para reduzir a poluição e as emissões de gases de efeito estufa, e ajudar a aumentar o número de passageiros no transporte público. Seu mecanismo de financiamento escolhido, na verdade, subsidia os motoristas, o que prejudica todos os seus objetivos declarados de reduzir as emissões e desencorajar a expansão de veículos individuais. E mesmo quando os modelos mostram que os planos não estão atingindo nossos objetivos, os poderes constituídos simplesmente os ignoram. Veja o pacote de transporte de U$ 5 bilhões da Metro que irá, de acordo com suas estimativas, reduzir os gases de efeito estufa do transporte na área de Portland em cinco centésimos de um por cento — essencialmente nada.
Diante das evidências crescentes de que seus planos climáticos são fracos e fracassados, temos a repetição de mitos desacreditados (como “reduziremos os gases do efeito estufa reduzindo congestionamentos com o alargamento das estradas”). E o consenso dos Departamentos de Transporte estaduais clama por incêndios climáticos ao gastar centenas de bilhões de dólares no aumento de capacidade de rodovias. Muito do trabalho das “cidades inteligentes” é realizado e tolerado apenas na medida em que apoia, ou pelo menos não atrapalha, os megaprojetos de status quo que essas organizações desejam. Resumindo: o esforço de “cidades inteligentes” se concentra principalmente no desenvolvimento de algoritmos para o arranjo ideal das espreguiçadeiras no Titanic, e não convenceu ninguém a mudar o curso para evitar icebergs.
Big Data, Brilhos luminosos, Pontos cegos
Brilhar a luz do big data muda nossa percepção: pequenos detalhes de algumas coisas se tornam nítidos. Mas nossa visão muda, nossas pupilas se contraem, nosso foco se estreita.
Muitas coisas que eram tons de cinza agora estão totalmente iluminadas. Mas fora do brilho dos holofotes do big data, todo o resto está mergulhado na escuridão.
Esse é o viés profundo do big data, ele ilumina algumas coisas, mas obscurece outras.
E faz isso de forma que tomemos decisões erradas.
Somos atraídos pela luz. Focados em resolver os problemas que vemos e descartando — por ignorância — aqueles que não conseguimos ver.
Quando medimos o movimento, inerentemente beneficiamos aqueles que estão se movendo ante aqueles que estão em ou são de um lugar, parados.
Quando medimos veículos, inerentemente beneficiamos veículos e penalizamos aqueles que não têm veículos.
Como resultado, acabamos gastando recursos e construindo lugares para as pessoas que não querem estar lá e, no processo, tornando-os piores para as pessoas que querem .
Não é surpresa que as pessoas com alternativas vão embora.
Via Caos Planejado.